O jogo na caixa e os sem-fortuna.
O jogo no
Brasil foi proibido no ano de 1964, pelo decreto lei 9215, sob a
alegação de que é um imperativo de “consciência universal” ,
aceito em todos os “povos cultos”, de acordo com a moral
jurídica [e] religiosa brasileira, configurando abuso nocivo a
“moral e aos bons costumes” é uma lei que pode ser considerada
principalmente mística, tendo em vista que foi feita pelo militar
presidente, Eurico Gaspar Dutra, que motivado por convicções
religiosas, de origem católica, fechou todos os 70 cassinos
existentes na época e cassou a concessão de vários outros
estabelecimentos comerciais que promoviam jogos “de azar”.
O
ocorrido gerou uma enorme crise econômica com a dispensa de
aproximadamente 40.000 funcionários que trabalhavam na indústria do
jogo e ainda foi firmado um acordo no qual o governo se comprometia
em pagar indenizações para Joaquim Rolla, um famoso empresário do ramo, conhecido por ter comprado o cassino da Urca juntamente com
outros políticos.
Se em
escala industrial o prejuízo foi uma crise econômica decorrente
desse fechamento, essa ação estava ligada a uma violenta
instituição que foi criada na década de quarenta e durante 20
longos anos tocou o pânico na população de rua e na rua, que foi a
delegacia de Jogos e costumes que fazia cumprir as leis de jogos e
vadiagens, prendendo sobretudo negros desempregados, artistas,
capoeiristas, além de invadir e depredar o patrimônio de terreiros
de candomblé prendendo seus membros e submetendo-os a grandes
constrangimentos.
Até
pouco tempo no estado da Bahia, no museu Nina Rodrigues, localizado
no necrotério de mesmo nome, as peças saqueadas dos terreiros
fechados pela dita instituição eram expostas juntamente com um
circo de horrores de fetos natimortos e abortados, a título de
curiosidades bizarras, sendo o próprio Nina Rodrigues um médico
famoso por sua filosofia lombrosiana essencialmente racista, no
sentido literal e ideológico.
Muitas
desavenças existiam dentro do universo dos cassinos ocasionadas por
questões de valores de apostas e disputas de público, todo cassino
deveria estar voltado também para a questão cultural com a
realização de shows, espetáculos e similares, bem como as
desavenças que eram ocasionadas nas mesas de apostas que vez por
outra acabavam em violência e em alguns casos mortes, a compra do
Cassino da Urca por uma sociedade anônima contribuiu para que
houvesse menos problemas por dar menos pessoalidade a administração
do negócio.
Fato é
que o jogo foi apenas tecnicamente proibido, tendo em vista que
atualmente no Brasil quem detém o monopólio dos jogos de sorte é a
caixa econômica federal, que tem diferentes tipos de títulos de
capitalização, loterias, raspadinhas e outros recursos de aposta
que funcionam regularmente e tem parte do montante de apostas voltada
para o financiamento de programas sociais e culturais, bem como a
realização de editais e afins.
A
aplicação atual dessa lei desencadeou o fechamento de bingos, o
confisco de máquinas e consequente perda de alvará de diversos
estabelecimentos de diferentes portes de pequenos bares a hotéis, e
a perseguição ao jogo do bicho que está mais fortemente presente
em comunidades e entre as classes populares.
No
entanto, tal como acontece com outras temáticas, como drogas e
aborto, o jogo nunca deixou de ser praticado, apenas foi condenado a
clandestinidade e a impossibilidade de arrecadação fiscal de sua
execução.
Vamos
então fazer uma análise da argumentação legal que caracteriza a
proibição do jogo “consciência universal” , aceito em todos os
“povos cultos”, de acordo com a moral jurídica [e] religiosa
brasileira, configurando abuso nocivo a “moral e aos bons
costumes”
A Caixa
Econômica Federal que atualmente é instituição pública
responsável pelas loterias, assim realiza loterias milionárias,
acumulativas, que distribuem milhões e milhões de reais todas as
semanas, para um ou poucos vencedores, fazendo milionários
instantâneos, num país onde a pobreza está a vista em esquinas,
abrigos, carceres, onde falta mais do que sobra, essa constatação
no entanto não pode nos conduzir a uma nova moral conservadora que
vise proibir loterias e outros jogos, mas tornar mais sustentável
essa prática. O jogo diverte, premia, se bem organizado também
diverte, se bem localizado educa, informa, reúne, mobiliza e
principalmente distribui dinheiro num país onde isso ajuda a
resolver grande parte dos problemas sociais.
O atual
modelo adotado pela Caixa, e a lei defasada e nada laica que rege a
jogatina no país tende a estimular a concentração e a contravenção
ao invés de redistribuir a renda, o que seria possível com a
diminuição da frequência das loterias semanais e a criação de
espaços culturais que redistribuam o dinheiro das apostas, ao mesmo
tempo estimulando as culturas locais, controlando a participação
popular através do CPF para evitar os prejuízos causados pela
compulsão que ocorre eventualmente em alguns jogadores.
A
reabertura de cassinos e a regulamentação fiscal dos jogos, numa
perspectiva economicamente viável, estará de acordo não com uma
mística e etnicamente insustentável “consciência universal”,
ou com uma questionável “moral e bons costumes” defasados
criados pelas mesmas pessoas que endossaram a tortura, o exílio e a
censura, sem falar na inacreditável utilização do termo povos cultos, que soa de profunda ignorância.
Vivemos
num Estado Democrático Livre de Direitos baseado na Laicidade da
sua ação e formulação, é inevitável frente a condição
dinâmica da cultura e a evolução do pensamento humano que as leis
sejam revistas e o processo de revisão constituinte seja implantado
vez por outra, sem isso as mulheres continuariam não podendo votar,
ou não teríamos o sufrágio universal, que é o direito de todos
os cidadão maiores de 16 anos.
A
proximidade da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Brasil torna
urgente que se discuta qual a realidade constitucional que queremos,
se ela será a mais justa, igualitária e benéfica para uma parcela
mais significativa da população, respeitando a coerência e a
laicidade, ou se vamos continuar vivendo sob a pesada imoralidade de
um passado tantas vezes violento, tantas vezes vil.
Também é
importante discutir que a reformulação das leis não pode ser
mediada ou adiada e eventualmente engavetada por argumentações de
cunho religioso tantas vezes utilizado por representantes eleitos
dessa ou daquela religião, quase sempre cristãs fundamentalistas.
Nos vemos
aqui diante de uma realidade de extremos, onde pessoas ricas com
muito dinheiro para fazerem volumosas apostas, ganham mais dinheiro,
enquanto vivemos numa terra que os desafortunados estão por toda
parte, sem chance alguma de acreditar em sorte.
Que se
construam mais centros comunitários e menos agências bancárias e
se redistribua essa dinheiro de forma mais equitativa tornando assim
os sonhos mais possíveis, mais próximos do povo, mais divertidos, e
assumindo assim nosso próprio sonho tropical, de uma terra de festas
e fortunas e belezas por todos os cantos.
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